quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Cidadão Ludovicense há 90 anos...

Machado de Assis perguntava, numa reminiscência assim: - Mudaria o Natal, ou mudei eu? Do mesmo modo poderei constatar que mudamos ambos: eu e a cidade. Admira-me os que afirmam: - Não mudo: sempre fui assim e assim continuarei. Lembra-me o poeta quando diz que o tal cidadão só passou pela vida, não viveu. Se o mundo muda, a vida muda, tudo se modifica ao meu redor, como posso fossivilizar-me? Assim procurarei, conforme permitir-me engenho e arte, traduzir as mudanças havidas na cidade e em mim próprio que, como costumo dizer, sou nascido, crescido e envelhecido nesta linda cidade que tanto amo e respeito.
att00020_3072x1921São Luís, fundada pelos franceses de Daniel de La Touche, em 8 de setembro de 1612, é a capital do Estado do Maranhão. E, como dizia Simão Estácio da Silveira, Presidente da primeira Câmara Estadual, “o Maranhão é o Brasil melhor”.
Às vésperas de completar seu quarto centenário São Luís sofreu, como era de esperar, muitas transformações. Algumas para melhor; outras nem tanto.
Da cidade que conheci menino, pouco resta de sua primitiva inocente natureza. Reminiscências de uma Ilha aprazível, de clima tropical, porém ameno, longe do calor escaldante que hoje nos consome, fruto do desmatamento desenfreado e da irracional ocupação imobiliária, que destrói manguezais e babaçuais e transforma em asfalto tudo aquilo que um dia foi natureza exuberante. Diz a sabedoria popular que para tudo na vida há um preço e em nossa cidade temos sido cobrados diariamente a pagar o preço do chamado “progresso”. Uma pergunta, porém, não quer calar? Progresso para quem? E para quê? Temos, de fato, evoluído em nossa cidade? Ou, em alguns aspectos, o que se sobrepõe é a perda de valores tão fundamentais à vida e à saúde de todos nós habitantes? Não recebam, por favor, estas reflexões como saudosismo de um velho citadino. Não! Reconheço que em muitos aspectos evoluímos. Mas não me fujo a registrar a preocupação com a perda de qualidade de vida, o que, aliás, é, no meu conceito, fator de grande relevância. Mas, entre perdas e ganhos vamos seguindo as mudanças, pois, afinal, tudo que pára se atrofia, estiola e morre.
att00034_3072x1798Para mim uma das mais graves mudanças efetuou-se na educação. (Falo de educação, não de instrução, cousas perfeitamente distintas). Educação fazia-se em casa, onde se ensinava o respeito aos pais, aos mais velhos e aos professores. Tomava-se-lhes a bênção, beijava-se a mão e recebia-se invariavelmente a promessa e o desejo: Deus te abençõe! Os métodos educacionais eram severos, os castigos corporais excessivos? Eram. Assim, porém, justificava-os minha avó: - Menino não apanha em casa, vai apanhar rua. Essa prática ensinava-nos a respeitar os direitos do outro e imprimia em nós valores fundamentais, base de uma convivência saudável. A família era a mestra e o exemplo. Reconheçamos que os tempos mudaram e hoje só com muito esforço e muito amor é possível manter íntegros os laços familiares. Mas há regras que se impõem para uma convivência, senão amorosa, pelo menos respeitosa. As crianças, depois que deixaram de ser “animais domésticos” como nos tempos da colônia, passaram a ser discriminadas como projetos de gente. Minha avó, à mesa, se algum de nós ousava falar, atalhava ríspida: - Cale-se! Você não é pássaro que vôe em bando! Apesar disso, ou por isso mesmo, mantinha-se o respeito. É incrível o comportamento de certos meninos diante dos próprios pais! Vejo guris “nos cueiros”, como se dizia, a desafiar pais e mães impotentes para tolher-lhes a malcriadez e o desrespeito. De outro lado, assisto com satisfação o resgate da infância como direito e a crescente busca de proteção àqueles que são a base de tudo, o futuro de qualquer nação.
att00018_3072x2116Agora, a Instrução. Fizemos questão de bem distinguir Educação de Instrução, porque são duas cousas absolutamente distintas. Há muita gente altamente instruída e pessimamente educada. Quantos doutores de privilegiada instrução sem o mínimo de educação! A família (por várias circunstâncias, inclusive a exigência da cooperação da mãe na economia doméstica) abriu mão de seu papel educacional em favor da escola e esta não soube, ou não pôde exercer sozinha essa função de “educar” no sentido mais amplo da palavra. Limita-se, e mal, a instruir. Sei que os tempos mudaram, os costumes são outros, ditados (infelizmente) pelos meios de comunicação que, de modo geral, de-se-du-cam.

Com respeito à Instrução fizemos progressos, não há dúvida, mas nos que parecer que, se por um lado “especializamos” demais, por outro é excessiva a exigência que fazemos aos alunos. Que currículos! Um excesso de conteúdos nas costas de quem começa a aprender. De um modo geral é muito conteúdo para todos, mesmo para os mais velhos. A questão não é de quantidade, mas de qualidade dos ensinamentos a meter nas cabecinhas ainda em formação.
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Muitos que me ouvem vão descrer do que lhes direi. Antigamente, no tempo do calor, dormia-se com a parte de cima das janelas...aberta! E dando para a rua! A família que tinha muitos rapazes notívagos deixava a porta-da-rua apenas encostada para que o último a chegar, fechasse. Perguntem aos mais velhos se alguém, àquela época, ao menos se lembrava de por uma arma no cós da calça, para ir divertir-se nos bailes de Carnaval, por exemplo. Havia brigas e desentendimentos? Havia. Eram, porém, cousas passageiras, decorrente de excessos, logo resolvidas amigavelmente, os brigões, ao fim, confraternizados na mesma mesa de bar. As maiores divergências eram as políticas que chegavam a inimizar as famílias por longos anos, os novos assumindo os rancores dos antigos.
Outras indiossincrasias perturbavam o ambiente. Os negros sofriam indignas discriminações, mas longe iam os tempos em que até a religião estipulava os limites: brancos, na Sé; pardos, na Conceição; pretos na Igreja do Rosário. A procissão de São Benedito atraia multidão e creio mesmo que, exemplo único no mundo, meu pai, protestante, comparecia...para acompanhar minha mãe.
Agora... falemos do sexo. Havia dois modos diversos de encarar o problema: o considerado normal merecia um respeito hipócrita, tinha um tratamento discreto, circunscrito quase ao espaço íntimo entre quatro paredes. Era tabu falar nele? Era. Digo porém que, com a reviravolta que sofreu o mundo, continua tabu: só que, hoje, com o sinal trocado: agora é tabu não se falar nele. E mais, não se praticá-lo às escâncaras, quando, segundo o primitivo entendimento, só deveria interessar a dois. Os homossexuais eram impiedosamente discriminados, muitos execrados e perseguidos em praça pública, sujeito a vaiadas e pedradas. Hoje se respeitam as opções de cada um. Ótimo! Quando eu e minha mulher, cúmplices e solidários que fomos de tantos amigos, e de seu sofrimento frente ao preconceito de uma sociedade hipócrita, imaginaríamos assistir à primeira parada do orgulho gay?!
Os deficientes eram considerados “pobres coitados” passíveis de muita pena. Com que satisfação vejo hoje a superação de tantos limites, condenados de ontem, vitoriosos de hoje, que muitas vezes superam os chamados “são”. Os mirantes de nossos famosos sobradões, além de outras utilidades, serviam como esconderijo de doentes mentais, tuberculosos, hansenianos, etc. que “envergonhavam” as famílias. E muitas donzelas que deram “um passo em falso” foram condenadas a essa prisão quase perpétua.
foto25A pobreza, infelizmente, sempre existiu. Apesar disso, o nível de exclusão era infinitamente menor e menos severo. Os mais humildes ocupavam os baixos-de-sobrado e as casas pobres da periferia que, apesar das limitações óbvias, mantinham um certo padrão de higiene. Durante muito tempo não houve palafitas, nem a miséria, a fome e a falta de dignidade humana que nos envergonha a todos... Não havia palafitas, nem a pobreza extrema que hoje se vê. Miséria, fome e falta de dignidade humana que a todos nos envergonha. Neste aspecto, apesar dos esforços, involuimos. Pioramos muito!

Com respeito aos transportes, na cidade havia poucos automóveis, os chamados “carros-de-praça”: os primeiros, de Dadeco, Astrolábio e Pindobuçu, requisitados para os casamentos grã-finos. E os bondes: Gonçalves Dias, Estrada de Ferro, Jordoa, Anil. Para Ribamar, que então era looonge, os lotações. E o Maria-Fumaça ligando S. Luís a Teresina, “soltando brasa e comendo lenha, tanto queima como atrasa”, como o imortalizou João do Vale. Lembro-se bem da minha viagem para assumir o lugar de escriturário do Banco do Brasil em Codó, nos idos de 1948, faz 60 anos! Tinha-se a roupa especifica para a viagem de trem, toda marcada pelos furos que as brasas da chaminé distribuía pelo ar. Cochilava-se na modorrenta viagem e acordava-se de repente ferido pelas queimaduras. Mas Codó tem um capítulo à parte. E que não é aqui o momento de abordar.
Poderia passar horas a fio falando desta cidade que nos viu nascer, eu, minha mulher e meus filhos; e meus netos; que nos viu crescer e envelhecer. Aqui criamos nós o encantamento de nossa juventude e tranqüilidade serena de nossa velhice: nosso berço e nosso túmulo.
Para finalizar gostaria de louvar a iniciativa da criação do Observatório Social de São Luís. Iniciativa apartidária, que conclamando todos, e cada um; moradores desta bela cidade, a nos mobilizar para melhorá-la em seus diversos aspectos.
 
Carlos Lima ,pesquisador da cultura e história maranhense e membro da Academia Maranhense de Letras.
 
 
 
 
Arislene

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